14 de ago. de 2010

(...) Agora somos mais do que modernos: demi-darks. Não temos fé, nem esperança, nem caridade. Bebemos vodca pura, cheiramos umas. Nunca mais compramos uma caixinha de incenso. E a bad-trip pinta sem química.

Tudo isso dói tanto. Eu nunca mais tinha ouvido John Lennon. O tempo corre, a gente vai descobrindo jeitos de se proteger. Elis? Nem pensar: põe aí a Paula Toller. Marc (quem lembra?) Bolan? De jeito nenhum, melhor um Boy George, cara. Let´s Roller. It´s only rock and roll. Só que eu nem sempre sei se gusto. Mas, por trás das defesas, esse vinco no canto esquerdo da boca continua avançando, cada vez mais fundo, cada vez mais longo. Você tenta reagir, sem dizer claramente não, pelo amor de Deus, não me dá esse disco pra ouvir, eu não entendo nada de música, eu não conheço John Lennon e nunca ouvi falar em Yoko Ono. Eu não tenho tempo. Não posso parar, nem pensar, nem sentir. Nem lembrar. Eu preciso ganhar dinheiro. Tenho pressa neste passo alucinado em direção ao buraco-negro do futuro.

Mas você acaba aceitando. Agora somos profissionais. Coloca no toca-discos, como quem não quer nada. Liga a TV, ao mesmo tempo. E no meio dos sons que vêm também da rua e dos outros apartamentos, de repente aquela voz tão antiga e conhecida grita:

- Mother!

Aumente o volume. Ou desligue para sempre, você me entende?





(Publicado no Estadão, Caderno 2, Domingo, 6 de abril de 1986)
by Caio F.