7 de abr. de 2009


Breve Introdução ao Estudo do Ciclo Seco



Todo mundo conhece ciclo seco, a maioria até já passou por ele. Alguns mesmo vivem desde sempre dentro dele, achando que isso é vida e eternizando o que, por ser ciclo, deveria também ser transitório. É preciso acreditar que passa, embora quando dentro dele seja difícil e quase impossível acreditar não só nisso, mas em qualquer outra coisa.
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Não que ciclo seco não tenha fé, o que acontece é que não podendo ver o que não é visível, fica limitado ao real.
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Antes de ir em frente, é importante dizer que ciclo seco nada tem a ver com as estações do ano. É coisa de dentro do humano, não de fora, e justamente por isso não tem nenhum método: vem quando não é esperado e vai quando não se suspeita.
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Ciclo seco não desaba de repente sobre alguém; chega aos poucos, insidioso, lento. Quando se percebe que se instalou, geralmente é tarde demais. Já está ali. É preciso atravessá-lo como a um deserto, quando se está no meio e a água acabou. Por ser limitado ao real, o ciclo seco jamais considera a possibilidade de um oásis ou de uma caravana passando. Secamente, apenas vai em frente.
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Porque o real do ciclo seco são ações, não pensamentos nem imaginações. Tanto que, visto de fora, não é visível nem identificável. Não se confunde com “depressão”, quando você deixa de fazer o que devia, ou com “euforia”, quando você faz em excesso o que não devia.
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Em ciclo seco faz-se exatamente o que se deve , desde escovar os dentes de manhã ou beber uísque à tardinha, mas sem prazer. Nem desprazer: Em ciclo seco apenas se age, sem adjetivos. À propósito, ciclo seco não se admite adjetivos – seco é apenas a maneira inexata de chamá-lo para que, dando-lhe um nome, didaticamente se possa falar nele.
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E deve-se falar dele? Quero supor entusiástico que sim, mas não tenho certeza se dar nome aos bois terá alguma serventia para o dono dos bois ou sequer para os próprios bois – e essa é uma reflexão típica do ciclo seco. Mas vamos dizer que sim, caso contrário paro de escrever já.
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E falando-se dele, diga-se ainda que ciclo seco não é bom nem mau, feio ou bonito, inteligente ou burro – nem a Alice de Woody Allen, nem Bette Davis em algum filme antigo, nem o Homem Elefante nem um dos irmãos Baldwin, nem Gertrude Stein nem Romário - , embora possa dar a impressão errada a quem o vê de fora, ávido por adjetivar.
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Ciclo seco, por exemplo, não se interessa por nada. Pior que não ter o que dizer, ciclo seco não tem o que ouvir, compreende? Fica na mais completa indiferença seja ao terremoto no Japão ou à demissão de Vera Fischer. No plano pessoal, tanto faz ler ou não ler um livro, ir ou não ao cinema – ciclo seco é incapaz de se distrair, de se evadir. Fica voltado para dentro o tempo todo, atento a quê é um mistério, pois que pode um ciclo seco observar de si mesmo além da própria secura, se não há sequer temporais, ventanias, chuvaradas?
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Nesse sentido, ciclo seco é forte, porque nada vindo de fora o abala, e imutável, porque de dentro nada vem que o modifique. E nesse sentido também é antinatural, pois tudo se transforma e ele não, simulando o eterno em sua digamos, i-na-ba-la-bi-li-da-de.
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E sendo assim, com alívio vou quase concluindo, pode se deduzir que.Não, não se pode deduzir nada. Só que passa, por ser ciclo, e por ser da natureza dos ciclos passar. Até lá, recomenda-se fazer modestamente o que se tem a fazer com o máximo de disciplina e ordem, sem querer novidades.
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Chatíssimo bem sei. Mas ciclo seco é assim mesmo.Todo mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá-lo distante como se se estivesse fora dele, e fazer de conta que não está ali pra que, despeitado, vá-se logo embora e nos deixe em paz? Eu francamente não sei. Ainda mais francamente, nem sinto muito.





O Estado de S. Paulo, 22/01/95
(ABREU, Caio Fernando.
Pequenas Epifanias, crônicas
(1986/1995).
Sulinas: Porto Alegre, 1996, 192 p.)